A Besta Esfolada

terça-feira, março 27, 2007

A Casa de Sarto

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Aquando da comemoração do primeiro aniversário do "Pasquim da Reacção", felicitei o Corcunda pelo elevadíssimo nível e distinção que tem sabido manter na blogosfera, qualidades que tornaram o espaço de que é responsável em algo verdadeiramente ímpar e de visita obrigatória diária; dois anos depois, reitero em pleno as considerações que então teci. E porque aos aniversariantes é hábito oferecer-se uma prenda, aqui deixo estas linhas de Frei Fortunato de São Boaventura, bem a propósito retiradas do célebre "Punhal dos Corcundas" (1824) e citadas em "Os Nossos Mestres ou o Breviário da Contra-Revolução", obra coligida por Fernando Campos:
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- A questão que mais vezes me tem feito dar voltas ao juízo é a da soberania do povo. Havia sete séculos que se dizia que a soberania estava no Rei. Em todo este espaço Portugal formou-se em Reino, ganhou poder, caiu, levantou-se, e sempre se engrandeceu. Quem notando estes acontecimentos não via que a soberania posta em El-Rei está muito bem posta? Todavia depois de 24 de Agosto começou a dizer-se que a soberania residia essencialmente na nação, isto é, que a nação não é nação sem ser soberana! Confesso que ouvindo esta doutrina senti em mim certa comoção estranha, e tal qual se sente pela aparição de fenómenos imprevistos, espantosos e anteriormente ignorados.
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- Assentemos de uma vez que nunca o Povo se diz soberano para outro fim mais do que cair toda a soberania nas mãos de um punhado de aventureiros, que desta arte lhe fazem a boca doce, enquanto mui a salvo, e a despeito da moral cristã e dos princípios mais vulgares de decência, vão enchendo a bolsa.
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- Desta soberania armada no ar entrei a desconfiar ainda mais quando vi seus efeitos práticos. Dizia-se que o povo havia de nomear quem lhe fizesse as leis, e que El-Rei devia executá-las à risca. Mas na nomeação de deputados vi que tudo era ambição e maranha. O povo não sabia ler, e nomeava por escrito quem os mais poderosos e os mais manhosos queriam para seus representantes. Ele profanou a autoridade de deputados, dando-lhes apelidos que nem ao diabo lembram. Profanou-a dando aos deputados os nomes de pais da pátria, de legisladores, de reformadores dos abusos, de liberais, etc., e bem sabia eu que os antigos davam raras vezes o nome de pai da pátria, e só a varões ao pé dos quais Fern. Th., M. B. C., etc., são como um ratinho ao pé de um elefante da Ásia.
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- Mas quando eu vi o Salão das Cortes cheio de bandalhos e petimetres, tão fofos como um sapo inchado, vomitando sandices e minando os alicerces da Religião e da Monarquia, desenganei-me de que a tal soberania era uma farsa armada para certos fins. Que diabo de soberania é esta (dizia eu) que traz inquieta a nação, espalha a impiedade, persegue os bons, desmancha a máquina da Monarquia, excita a guerra civil, provoca as tropas ultramontanas e prepara a anarquia? É para isto que foi proclamada a soberania do povo.
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- A soberania do povo
De que na antiguidade sagrada ou profana, por mais que se busque, não aparecem vestígios, antes pelo contrário quanto mais perto da origem da sociedade chegam os trabalhos e exames históricos, vai-se parar constantemente em algum Rei, ou Juiz, ou Magistrado Supremo… o que é tão certo que o ditado vulgar, "haja um que nos governe", já o era mil anos antes que Jesus Cristo viesse ao mundo.
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- Um Rei deve ser clemente; e já dizia um filósofo antigo (Séneca) que era tão indecoroso a um Rei o perdoar a todos, como o castigar a todos; há porém muitos lances em que uma desmesurada clemência é um crime de que o Rei dos Reis lhe tomará uma estreitíssima conta.
JSarto
in,
A Casa de Sarto

domingo, março 04, 2007

A Casa de Sarto

Do "Sermão sobre a Verdade da Religião Católica"
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Conforme havia prometido aos meus leitores, trago-lhes hoje um extracto retirado do magnífico "Sermão sobre a Verdade da Religião Católica" que o Padre José Agostinho Macedo pregou na Quaresma de 1817, na Igreja de Nossa Senhora dos Mártires de Lisboa. Aqui fica o mesmo, na época própria e com uma estranha actualidade cento e noventa anos depois:
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Em todos os tempos desagradou a muitos a Religião Católica, não só porque é muito sublime o que propõe para crer, mas porque é muito dificultoso o que propõe para praticar. Ainda em nossos dias muitos dos bárbaros não têm dificuldade em acreditar nossos mistérios. E como a poderiam ter, se cada um deles em suas seitas acredita coisas tão estranhas e tão repugnantes, que tem mais que vencer em acreditar as suas loucuras que as nossas verdades? O seu trabalho consiste em sujeitar-se às nossas leis. Estas têm rebelado à Igreja cem nações, e conservam ainda muitos povos na infidelidade. Uns se declaram contra a penitência como um peso muito gravoso, outros contra o nosso culto como coisa muito supersticiosa, outros contra a castidade como um preceito muito difícil. Mas que conseguiram? Nada mais que mostrar a depravação dos seus corações sem alterar a pureza da nossa Religião. Por mais esforços que hajam feito as paixões humanas, não puderam ainda abolir uma só Lei no Código da Religião. Que digo eu abolir? Não puderam adoçá-las, ou temperá-las na mais pequena parte. Depois de tantos e tantos séculos, com tantos e tantos inimigos, cada ápice do Evangelho conserva ainda todo o seu rigor. Aquele sacrossanto jugo que trouxeram os Apóstolos, é o mesmo a que ainda submetemos o nosso pescoço, sem que se torne mais ligeiro, ou pelo tempo que estraga todas as coisas, ou pela violência que as rompe. Muito cumpria à humana fraqueza alargar os caminhos do Céu e dilatar-lhe algum passo mais. Muito cumpria que as portas do Paraíso fossem menos apertadas. Mas não, estas são de bronze, não se podem alargar mais. Embora se quebrantem muito os divinos preceitos, todos confessam que eles obrigam. Não é o homem casto, mas conhece que o deve ser; cometem-se delitos, mas sentem-se remorsos; e ainda que se obre contra a Lei, a Lei não dorme, mas grita, e chama a seu tribunal os transgressores.

Mas esta liberdade de transgredir a Lei, é o último, e talvez o maior sinal de que Deus assiste à sua Religião, pois a faz triunfar da depravação dos seus mesmos sequazes, inimigos tanto mais formidáveis quanto são mais ocultos e mais domésticos. Sou obrigado a falar das nossas ignomínias e me envergonho, que devendo fazer a resenha das palmas alcançadas pela Religião em suas vitórias, deva por necessidade encontrar-me com os nossos despojos. Eu o sei, mas não imaginava ler entre os títulos dos vencidos também o nosso nome. Mas é assim, triunfa a Religião de nós, sustentando-nos contra nós, não obstante a guerra terrível que nós lhe fazemos com os nossos vícios. À vista deles, quem não diria não ser possível que dure uma Religião contra a qual se revoltam os seus mesmos filhos? Observai como se vive nas cidades mais católicas, como em Lisboa se vive. Com quanta facilidade derramam aqui uns o sangue dos outros! Quantas inimizades há entre os particulares, quantas discórdias nas famílias! Que licença e devassidão nos mancebos! Que avareza nos velhos! Que injustiças nos tribunais, que violências nos soldados, que prepotências nos nobres, que enganos nos plebeus, que luxo, que vaidade, que liberdade nas mulheres! Se Deus não tivesse aqui deixado algumas almas justas, semente e relíquia dos séculos santos, seria esta cidade em tudo semelhante às cidades do paganismo. Quantos entre os gentios, porque nós vivemos com eles na Ásia, na África e na América, recusam crer como nós? Eis aqui os danos que causam os nossos vícios à Religião. O infiel não se resolve a abraçá-la, o fiel a perde. Não se alistam debaixo das bandeiras do Deus de Israel muitas tropas auxiliares que se alistariam, e aquelas que seguem estas bandeiras fazem quanto podem por destruir seu campo, abater seus estandartes e fazer retroceder a Arca Santa, que deviam defender e guardar! Tropas rebeldes, debalde vos afadigais! Os arraiais de Deus devem subsistir até à consumação dos séculos. Aquela Arca mística da Aliança em que se conserva a sua Lei e os seus mistérios, ainda que ameace cair, não cairá jamais. Não há necessidade de mãos profanas para a sustentar, Deus com a sua dextra impedirá a sua queda. Sua omnipotência a conservará firme entre os combates e fará ver que esta firmeza não pode ser senão uma impressão do seus braço divino, o qual, não satisfeito de autenticar a sua Religião com a virtudes dos milagres com que a promulgou por todo o mundo, com a efusão do sangue em que a sustentou contra os tiranos, com a força do saber que a sustentou contra os hereges, a autentica finalmente com o nosso viver depravado, e faz servir à sua firmeza os nossos mesmos pecados.
JSarto

domingo, fevereiro 25, 2007

Afrodite

José Agostinho de Macedo - A Besta Esfolada
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A Besta Esfolada é um Blog dedicado ao Padre José Agostinho de Macedo. Foi criado no final de 2006 e merece umas visitas atentas. Nas Edições Afrodite, o Padre foi um dos escolhidos por Natália Correia para a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica:
O Padre José Agostinho de Macedo nasceu em Beja (1761) e morreu em Lisboa (1831). Professou na Ordem de Santo Agostinho, mas o seu carácter indisciplinado e pouco escrupuloso determinou a sua expulsão, conseguindo passar a presbítero secular. Convertido a feroz paladino do Miguelismo, nele empenhou o seu iracundo temperamento de polemista, encarniçando-se contra os pedreiros livres com implacável sectarismo. Fez parte da Nova Arcádia ingressando mais tarde na Arcádia de Roma, com pseudónimo literário de Elmiro Tagideu. Ostentando uma grande erudição filosófica e científica, dela se socorreu para a composição dos poemas didácticos «A Natureza», «Newton», «Viagem ao Templo da Sabedoria». A sua desmedida presunção literária levou-o a apoucar os «Lusíadas», tentando sobrepor-lhe uma epopeia, «O Oriente», de metrificação exemplar mas monótona que prejudica a grandiosidade da concepção da obra de leitura assaz enfadonha. Impiedosamente satírico, neste tom vasou os humores da sua virulência, dirigindo uma sátira a Bocage que lhe respondeu com «Pena de Talião». Em «Os Burros» (1827), José Agostinho de Macedo foca a tertúlia do botequim de José Pedro da Silva, no Rossio, escolhendo para herói o liberal João Bernardo Loureiro da Rocha, sócio de Pato Moniz no fomento da Imprensa revolucionária da época. É incontestável ser este poema uma das obras de maior vulto da polémica parodística, à qual oferece das mais inflamadas páginas concebidas pelo génio malévolo da sátira.

Está também na Poesia Portuguesa Erótica e Satírica – Séc. XVIII-XIX, apresentado por José Martins Garcia:
José Agostinho de Macedo, padre por acaso, fulminador do mundo por formação e vocação, em vez de aterrorizar as gentes com a pintura dos caldeiros infernais, resolveu aterrorizá-las com uma violenta má-língua. No campo da sátira, ele é o maior especialista do bota-abaixo, atacando às cegas, destruindo por destruir, marrando com uma raiva de touro. Em termos plásticos: um padre sanguíneo, anafando, bruto, em vias de arrotar anátemas.Feroz reaccionário, por teimosia e por tradição do solo, se por vezes se torna notável por não ter papas na língua, quase sempre destrói por embirração, nada lhe importando os fundamentos da crítica. Um campo onde Macedo se move como peixe na água: o das polémicas literárias (ou passando por tal) do seu tempo. Claro que como crítico literário, o nosso padre não percebe nada de literatura (o que se integra nos usos e costumes da «colónia» lusitana). Se amaldiçoa Napoleão, não é por causa dos mortos, é porque as campanhas napoleónicas trouxeram ao recato lusitano a «peste» do liberalismo. Sobre todas as matérias, o padre Macedo sabia tudo (o que é também muito característico da nossa intelectualidade e dos nossos homens providenciais). Nenhuma hesitação, nenhuma dúvida. Parece quer nunca leu Kant, mas criticou-o, elogiando e depois denegrindo, consoante a disposição de espírito. Um exemplar insigne da nossa cultura!
Ricardo Jorge

terça-feira, janeiro 30, 2007

Vandelli & Macedo

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Registo do passaporte de Vandelli para sair dos Açores
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Capa de Os Burros
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DOMINGOS VANDELLI & AGOSTINHO DE MACEDO:
A PROPAGANDA ANTI-MAÇÓNICA
Entre as centenas de títulos de Elmiro Tagideo, Padre José Agostinho de Macedo (1761-1831), Os Burros ou O Reinado da Sandice, publicado anonimamente em Paris em 1827, presta informações curiosas sobre instituições que marcaram a reforma pombalina e seus prolongamentos: a Faculdade de Filosofia, em Coimbra, com o Jardim Botânico, dirigido por Domingos Vandelli (1735-1816); o Real Jardim Botânico da Ajuda, com o Museu de História Natural, dos quais também foi director, e a Academia Real das Ciências de Lisboa, de que foi sócio fundador. Publicou nas Memórias da Academia, e dirigiu a secção de Ciências Naturais.
Praticamente todos os intelectuais de nomeada são zurzidos por Elmiro com o mais suave dos seus epítetos. De asno para cima chega ao inquisitorial cochino, mas não é a sátira o meu objectivo. Pondo-a de lado, o poema revela algo que só pontualmente se costuma referir: o facto de os filósofos naturais se congregarem em sociedades iniciáticas.
O Marquês de Pombal teve a ambição de modernizar o ensino, pondo Portugal a nível dos países mais evoluídos, o que aliás conseguiu, em projecto e em consequências estruturais póstumas. E até em facto, pois o laboratório de Física, em Coimbra, foi considerado o melhor da Europa. Criaram-se os jardins botânicos, observatórios astronómicos, laboratórios de Química, de Ciências Naturais, tudo destinado à prática e conhecimento vivo da natureza, à aplicação técnica e aproveitamento económico, e divulgação do saber ao público através das demonstrações.
Chamou os melhores professores estrangeiros para colaborarem na concepção dos projectos e leccionarem na Universidade Reformada, entre eles Vandelli. Incluíam-se as ciências nas matérias curriculares, primeiro no Colégio dos Nobres, que em parte por isso mesmo foi um fiasco, depois através da criação da Faculdade de Filosofia, para a qual Vandelli foi nomeado lente de História Natural e Química.
Professor da Universidade de Pádua, Vandelli celebrizara-se na Europa com publicações sobre botânica, zoologia, hidrografia, termas e águas medicinais. Correspondia-se com Lineu, admirador de Pombal. O sueco desenvolvera um melhor sistema de classificação, e acolhia, nas sucessivas edições do Systema Naturae, comunicações sobre novas espécies.
Quer nas aulas, quer com a publicação de catálogos como Fasciculus plantarum... (1771), Florae lusitanicae et brasiliensis specimen... (1788) e Florae, et faunae lusitanicae specimen (1797), VandeIli foi o introdutor entre nós do sistema lineano. Na correspondência entre ambos, e muito embora ambos se insiram no espírito racionalista das Luzes, a Natureza não aparece como objecto de estudo exclusivamente material. Há uma atitude de contemplação romântica que toca o misticismo, e atinge o próprio país, quando Lineu considera Portugal a Índia europeia, terra felicíssima. E infelizes os países que não possuem terras exóticas. Nos vero agnoscimas D.T.O. scripsisse duos libros et Naturam et Revelationem, escreve Lineu (Vandelli, 1788) ao amigo que o vai deslumbrando com ofertas de sementes e flores desconhecidas. Como um véu mágico, a linguagem sacraliza um trabalho laboratorial minucioso, perfeitamente moderno, que exige microscópio para «descer aos mais divinos segredos fechados no interior do Sacrário da Natureza» (ibid.).
Projectos reformistas num país sob apertada censura régia e eclesiástica, vivendo ainda no terror dos autos-de-fé, fossem eles religiosos, políticos ou científicos, para sobreviverem precisavam de recato. Como na Europa, as nossas arcádias e primeiras academias começaram por ser sociedades secretas, e era em tal sistema que se poetava, prosava e avançava na ciência moderna. A experimentação, entretanto, só foi possível graças ao suporte da alquimia, uma vez que só os alquimistas, no séc. XVIII, sabiam o que era um laboratório, com a correlata exigência de matéria-prima, instrumentos e uso das mãos. No século anterior, dito dos génios, homens como Paracelso e Newton, e do segundo basta dizer que a teoria da relatividade restrita é newtoniana, eram alquimistas. Nada disto, entretanto, se passava de maneira pacífica. Se o termo química era suspeito de heresia para as mentalidades conservadoras, a palavra alquimia dava direito à fogueira, por a Inquisição a ter conotado com bruxarias. Em 1781, alguns alunos de VandeIli foram de sambenito a um auto-de-fé, acusados de «Hereges, Naturalistas, Deístas, Blasfemos, Apóstatas, Tolerantes e Dogmáticos». Além disso liam por Rousseau e outros Hereges. Na Faculdade de Filosofia, preparavam-se alunos para serem naturalistas.
Por seu lado, a maçonaria resguardava esoterismos antigos e hermetismo, de tal maneira que parte da vanguarda intelectual, aquela de que nasceriam as independências americanas e o liberalismo, era um coágulo de filosofia hermética e popularização da ciência mais avançada do tempo. Não que estes homens buscassem transmutar chumbo em ouro; o ouro vinha do Brasil, e no laboratório fabricaram pólvora; buscavam porém a idade do ouro. Essa busca tem uma linguagem secreta, sobrenadando ao discurso científico.
Domingos VandeIli tomou parte nas mais diversas áreas da liderança nacional. Faz parte dos dados óbvios que era deputado do Tribunal da Real Junta do Comércio, que foi economista e conselheiro de finanças de D. João VI. Criou a fábrica de porcelana de Santa Clara, em Coimbra, de onde saíram as louças de vandel, as melhores do tempo. Associou-se à do Cavaquinho, em Gaia, fornecendo as suas receitas e segredos. Também esteve ligado à do Rato, em Lisboa. Ao que se diz, nas suas aulas de Química, os cadinhos, bocetas e almofarizes de cerâmica eram fabricados pelos alunos, no curso de experiências que visavam desenvolver tal indústria em Portugal. Como conheceu o sucesso, saíram leis a proibir a importação de louças da Europa. Tudo isto é do domínio público, mas Vandelli é uma figura sombra, invisível (não se conhecem retratos dele), cuja verdade falta revelar. A informação sobre ele é muitas vezes contraditória, contraditórias as avaliações dos seus actos. Reclamou um julgamento que não lhe foi feito, mas não é por isso que o mistério permanece.
Ocioso enumerar em quantas actividades se envolveu este médico, um dos pioneiros da conquista do espaço, na esteira de Bartolomeu de Gusmão, vulcanólogo, autor de uma espécie espectacular, mal conhecida ainda agora, um dos mais extraordinários animais à face da Terra, a tartaruga-lira, Dermochelys coriacea (Vandelli, 1761), criatura que mergulha a mil metros de profundidade e chega a pesar mais de novecentos quilos. Deve-se-Ihe a concepção dos jardins botânicos da Ajuda e Coimbra, e a flora ornamental que conferiu a Lisboa a sua marca exótica.
Enfim, Vandelli tocou todos os instrumentos, como era próprio dos filósofos naturais, e obteve várias recompensas. Teve porém o percalço de ser bom de mais, o que lhe acarretou o dissabor de no fim da vida ter injustamente ganho o título de traidor à Pátria. Trata-se da Setembrizada, no rescaldo das invasões francesas. Na noite de 10 para 11 de Setembro de 1810, a polícia prendeu-o, bem como ao filho, e a mais notáveis, entre eles o comerciante Jácome Ratton, e Domingos Pellegrini, o pintor. Foram embarcados na fragata Amazona com destino às Ilhas, as masmorras da Terceira, nos Açores. Não houve julgamento nem acusações, sim artigos publicados anonimamente num jornal de Inglaterra que os davam como conspiradores contra o governo e aliados. Tais notícias foram desmentidas pelos ingleses, aliás estes logo se encarregaram de interceder por Vandelli, através da Royal Society of London, academia criada por rosacrúcios, a cujo presidente, Banks, Vandelli dedicara uma espécie botânica.
Precedera esta prisão o mais condenado episódio da sua vida: a vinda de Geoffroy Saint-Hilaire a Portugal, com o fim de escolher nas bibliotecas e museus material destinado a enriquecer as colecções francesas. Segundo a opinião corrente, Vandelli teria deixado levar do museu da Ajuda, sem nenhuma resistência, o que hoje constitui lista de muitos produtos naturais. Há uma carta dele ao regente, então no Brasil, de 17 de Setembro de 1808, pela qual ficamos a saber que o ouro do museu tinha sido entregue a S. A. R. antes da sua partida, já a precaver o saque; que os exemplares mais valiosos tinham sido escondidos; que, estando as caixas na alfândega, se dera a restauração, pelo que solicitara a Beresford a restituição; e ainda que, apresentando-se Saint-Hilaire no Quartel General, propusera uma permuta, acabando por só ficar com duplicados, e oferecendo em troca minerais que não existiam no museu. De importante, Saint-Hilaire só levara a cópia de uma Flora do Peru, e a Flora Fluminense, ambas inéditas. Este caso, mais do que a suspeita de jacobinismo, veio a merecer-lhe a acusação de traidor, e o hábito de o tratarem como estrangeiro. Vandelli, em certos textos, mostra orgulho em ser português. A ciência, a economia, a agricultura, eram para ele uma questão de patriotismo. Naturalizou-se, o mais tardar, quando o nomearam deputado da Junta do Comércio, na qual não se admitiam estrangeiros.
Na Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo, descobri o registo do passaporte que permitiu a sua partida para Inglaterra. Datado de 20 de Fevereiro de 1811, há nele um ponnenor sugestivo, para lá de mostrar que só ficou nos Açores uns seis meses: a autorização para o filho o acompanhar. O nome nem consta, é apenas referido pela patente militar. Era preciso Domingos Vandelli ter muito sólida reputação na Europa, como tinha, ser muito familiar da Royal Society, como o rosacrúcio que suspeito ter sido, para o governo permitir que um oficial do exército português, deportado nas Ilhas, saísse do país com tanta facilidade.
Registo do passaporte de Vandelli para sair dos Açores
Alexandre, um dos quatro filhos de Domingos Vandelli e D. Feliciana Izabella Bon (a família Bon usava em França o título de marqueses de Saint-Hilaire), viria a ser guarda-mor da Academia Real das Ciências, Ajudante do Intendente Geral das Minas e Metais do Reino, e partiria para o Brasil após a independência. Pai e filho mantiveram relações importantes com a América, Domingos Vandelli foi um dos lentes que autorizaram (em 1779) a viagem, por motivos particulares, de Joaquim Veloso de Miranda a Minas Gerais. Promoveu a viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira ao Brasil, este estava lá quando o secretário da Academia Real das Ciências, visconde de Barbacena, abafou a Inconfidência Mineira. Foi mestre de José Bonifácio de Andrada e Silva, Intendente das Minas e Metais do Reino, sogro de Alexandre Vandelli. Esta família dos Andradas está vinculada à independência do Brasil, Bonifácio de Andrade era ministro de D. Pedro, quando este soltou o grito do Ipiranga. A maior .parte dos homens que se notabilizaram na época eram brasileiros. Vieram tirar os cursos em Coimbra, alguns tinham conferência uma vez por semana em casa de Vandelli. Só aqueles em quem via talento e amor patriótico. Para discutir assuntos científicos e algo importante na época: a criação de sociedades. Neste domínio, a Real Academia das Ciências ocupa lugar central.
Sede do Grande Oriente, segundo Agostinho de Macedo, posta sob o símbolo da Rosa, e sob os auspícios da Rainha do milagre delas, Isabel (Ys+Abelha, em linguagem esotérica), a Academia Real das Ciências, que ao tempo era uma instituição brilhante, é incluída por Elmiro no Reino da Sandice, em moldes que iluminam o porquê do secretismo. Nela floriu não só uma ciência rebelde ao enquadramento teológico da escolástica e Inquisição, como germinou a semente do liberalismo e das independências americanas. Abade Correia da Serra, secretário da Academia, ministro plenipotenciário de Portugal nos EUA, sócio da Philosophical Society of Philadelphia (Filadelfos é nome de ordem iniciática), não passou toda a vida a herborizar. Vandelli admirava-o, deu o nome de Correa a uma das espécies de plantas coligidas no Brasil por Joaquim Veloso de Miranda, cujo herbário estudou e classificou.

Ora agora vem ca, Sandeu, chegaste
À grande sala que uma vez somente
Serve no ano à Pedreirada nossa.
O veneravel Maldonado mudo,
Zarolho Costa, que dos filhos mestre
Do Seabra se diz; doctor Vicente
O consultado oraculo dos tolos;
Rodrigo Pinto, thesoureiro d'elles;
E os mais abysmos da sciencia ou trolha,
Que o volcanico Hippolyto salvando,
Ficaram na esparrella, às Ilhas foram;
Aqui tinham Sessão do Grande Oriente.
Olha a rica armação franjada d'ouro;
Olha o docel de veludilho negro,
Os ricos avantaes, e as luvas brancas,
A espada, a caveirinha, a trolha, o prumo,
A esquadria, o compasso, a mitra, os cornos.
Os d'alto grau na Pedreirada mestres,
Que igualdade sonhando, e idades de ouro,
Do estouvado Francez não conheceram
Essa fatal Revolução de sangue:

Vandelli foi um destes pedreiros livres, um sonhador da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Uma vez por ano pôs o avental e demais insígnias maçónicas para a Sessão do Grande Oriente, na sala nobre da Academia Real das Ciências. Correndo o risco de o apanhar ou Pina Manique ou a Inquisição. Elmiro Tagideo está na ala adversária dos académicos a quem distribui os piropos caros à mesma Inquisição, aquela e a de Manique que nunca lhe consentiriam a liberdade de publicar o livro em Portugal, e ele bem conhecia, uma vez que foi funcionário da Real Mesa Censória. E sócio também da Academia, portanto bem informado.
Vandelli, o Jardim Botânico da Ajuda e o Museu de História Natural, tiveram a honra de ser admitidos n' O Reino da Sandice:


No Museu do Palácio agora entremos:
Aqui tenho o meu throno, e sou Rainha;
É este o Busto do Sandeu Vandelli,
Aquella estatua Bonifacio Andrade;
Os tres Reinos aqui classificaram,
Ordenadores Comissarios ambos.
Vai vendo, filho meu, sôbre os armarios
Dos subalternos na sciencia inutil
Os Bustos, em argila, em greda, em hum
Dos correios da morte em longo fio,
Aqui ves os retratos na direita;
Do Museu da Sandice enfeites dignos!
Acolá o Ricardo tens, gran' Trolha,
Que em Coimbra a Catherina divertia,
Ao que Reitor dos Nobres ser devera,
E à Maçonica depois dignidade,
Agente d' Albion, dos Lusos Régulo;
Fazendo-o eu d' Estado Conselheiro,
Pois tal gente compete a tal Estado.
De Mello Franco a estatua envemizada,
Co'a essencia da Vaccina, aqui contempla;
De ranhosas crianças rodeiado
Este assassino está, co'a lancetinha
Mettendo o pus, e consolando a Morte,
Pois sem ella as trazer, bexigas forma.

D. José morreu de varíola em 1788 e há quem acuse disso a rainha, por não ter permitido que o filho fosse vacinado. Ou seja, perfilha-se a tese de que o príncipe terá sido assassinado. Acabámos de ver Padre José Agostinho de Macedo a chamar assassino ao médico MeIo Franco, um dos mais notáveis da época. A Instituição Vacínica, criada em 1812 pela Academia Real das Ciências, não passou sem ataques e polémicas. Em França a vacina fora repudiada pelo próprio corpo médico. Vacina e anterior inoculação variólica. Esta consistia em inserir na pele pó de bexigas de ser humano. A vacina recorria ao das vacas. Dizia-se então que as pessoas vacinadas corriam o risco de mugir, lhes nascerem pêlos e cornos.
Para além de que numa atmosfera carregada da ideologia do Santo Ofício, havia de ser insuportável a ideia de sujar o sangue, para mais tratando-se do sangue azul do príncipe D. José. Só com o Marquês de Pombal fora abolida a exigência de certificado de sangue limpo aos cidadãos que pretendiam desempenhar certos cargos ou exercer certas profissões. Preconceitos raciais e religiosos ligados ao corpo nem nos nossos dias desapareceram. Padre Agostinho de Macedo está a falar da vacina e não da inoculação, o que significa que redigiu esta passagem muitos anos após a morte de D. José. De outra parte, por muito anti-liberal (foi um miguelista fanático), era um escritor moderno, considerado pré-romântico e o primeiro jornalista português em moldes contemporâneos. Se um intelectual desta estirpe chama assassinos aos pioneiros da vacina, àqueles que contribuíram para que a varíola desaparecesse da Europa, é difícil esperar que a rainha tivesse ideias mais desempoeiradas do que ele. Além do mais, se vacinados morriam, antes, com a inoculação, muitos mais sucumbiriam, razão de sobra para D. Maria temer a cura mais do que a doença. Uma das maiores frustrações dos médicos foi a morte de uma filha do duque de Lafões, presidente da Academia, que fora preventiva e exemplarmente vacinada.
Vandelli era médico, a varíola foi assunto da sua correspondência com colegas estrangeiros, que se lhe queixam das calúnias lançadas sobre os que vacinavam. A grande preocupação da ciência girava em torno das doenças. Botânicos, zoólogos, químicos, mineralogistas, em parte trabalham com objectivos médicos, porque qualquer dos Três Reinos fornecia remédios. Em 1774, na sua primeira lição - «Nunca me veio ao pensamento que eu devesse ser o primeiro, que em esta Ilustre Universidade houvesse de ensinar a Ciência Química» -, Vandelli informa que o uso da Química se alargava a todos os campos médicos: fisiologia, patologia e terapêutica; que examinava a natureza de todas as partes do corpo humano, e também fazia conhecer as depravações, origens e efeitos dos humores. E concluía: «Nem também as forças, virtudes, e elementos dos venenos e dos remédios, se podem conhecer se não pelo meio da Química».
Foi ainda no Laboratório de Química que Vandelli ensinou os alunos a fabricar balões. A Gazeta de Lisboa noticiava lançamentos a 25 e 27 de Junho de 1784, dizendo que a máquina aerostática tinha figura piramidal cónica, subira no ar até o seu diâmetro não parecer mais de dois palmos, e informava: «Esta máquina se achava prestes no laboratório químico da Universidade para ser lançada aos ares a 15 de Junho; mas, quando os autores dela, que são Tomás José de Miranda e Almeida, José Álvares Maciel, Salvador Caetano de Carvalho e Vicente Coelho de Seabra, todos aplicados às Ciências Naturais, quiseram autorizar esta experiência (que lhes fora encarregada no princípio do ano lectivo próximo passado pelo seu mestre, o Dr. Domingos Vandelli) com a assistência do Exmo Reitor da Universidade, por esta razão se demorou ali o referido tempo. E efectivamente no dia 27 assistiram à experiência o dito Exmo Reitor com todo o corpo académico, nobreza e povo, por quem os autores dela foram geralmente aplaudidos».
Um ano após a estreia dos irmãos Montgolfier, Vandelli exigira dos alunos que lhe pusessem um aeróstato no ar, o que eles, dignos do mestre, diligentemente cumpriram. Alguns vieram a seguir-lhe as pisadas: Vicente Seabra, já atrás referido por Elmiro Tagideo, foi químico importante. Maciel seria deportado para Angola, dada a sua participação na conjura do Tiradentes.
Elmiro Tagideo usa o Museu e Real Jardim Botânico da Ajuda como pretextos para a sua diatribe política contra o estado de coisas da época. Em muito terá razão. Em muito não terá nenhuma, como ao dizer que no Jardim Botânico não havia plantas exóticas. Vandelli plantou tantos exotismos que chegou a ser acusado de introduzir em Lisboa uma epidemia de dragoeiros. São muito belos, e além disso eram úteis, forneciam o sangue de drago.

Deixemos animaes que nestes Paços
Nunca teem fim quadrupedes e insectos;
Só Aguias no Museu nunca aninharam!
A meu jardim botanico encaminha
Agora os longos pés, que às hervas corres:
Nenhuma planta exotica vegeta
N'este meu logradouro, apenas cardos,
Pasto mimoso de esfaimados Burros.

Em 1791, Brotero sucedeu a Vandelli na direcção do Jardim Botânico de Coimbra. O menor dos seus defeitos foi a dor de cotovelo. É ele a fonte de algumas maldades dirigidas a Vandelli. Encerremos com o retrato que de Padre Félix da Silva e Avelar, verdadeiro nome do Botânico, pinta Elmiro Tagideo, se por acaso não for Veloso de Miranda o retratado - sim, "o nosso Velloso", como diziam os académicos, era brasileiro:

Olha neste recanto as obras todas
Que o gordo, traduziu, Padre das hervas;
D' agro-manía possuído a eito,
Aos Lusos deu theoreticas batatas,
Planos de arroz e mel, cevada e milho,
Fazendeiros da America e mellaço,
Co' as estampinhas mil, (trabalho inutil)
Que a Dom Rodrigo o bom, milhões custaram
Na abertura das chapas e matrizes
Das lettras calcographicas de trampa.
O tractado da Abelha aqui conservo,
Que ensina so despovoar colmeias.

Brotero foi também maçon e sócio da Real Academia das Ciências. É facto que uma das suas obras no Real Jardim Botânico da Ajuda, que dirigiu, foi mandar fazer chapas de metal para a identificação científica das espécies plantadas por Vandelli. E certo ainda que vários escreveram sobre o mel e as abelhas. Não me recordo porém de ter Brotero escrito algum tratado sobre o assunto. A menos que não fossem aquelas de que os alquimistas diziam: A rosa dá o mel às abelhas. E decerto não é Brotero o retratado, sim Veloso de Miranda, o que para o caso não faz grande diferença.
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Bibliografia
AZEVEDO, P. (1922) - Geoffroy Saint-Hilaire em Lisboa. Boletim da Classe de Letras, Academia das Ciências de Lisboa. XIV.
COSTA, A.M.A. (1986) - Domingos Vandelli (1730-1816) e a cerâmica portuguesa. ln: História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. Academia das Ciências de Lisboa.
CRUZ, L. (1976) -Domingos Vandelli. Coimbra
PALHINHA, R. T. (1945) - Domingos Vandelli, Revista da Universidade de Coimbra, XV.
VANDELLI, D. (1788) - Florae lusitanicae et brasiliensis specimen et epistolae ab eruditis viris Carolo a Linné, Antonio de Haen ad Domicum Vandelli scriptae. Typ. Acad.-Regia, Coimbra.
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Artigo publicado originalmente na revista Sol XXI, 12, 1995, pp. 3-10, Lisboa, com o título "Domingos Vandelli & Agostinho de Macedo".

A Casa de Sarto

William Cobbett e José Agostinho de Macedo
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Numa autêntica surpresa daquelas que sucedem apenas aos que têm o prazer de frequentar as livrarias alfarrabistas, descobri recentemente um exemplar em língua portuguesa da obra de William Cobbett, "História da Reforma Protestante em Inglaterra e Irlanda; fazendo ver que este acontecimento abateu e empobreceu a maior parte dos habitantes destes países; em uma colecção de cartas, dedicadas a todos os ingleses justos e sensíveis" , impressa em Lisboa, no ano de 1828, na Tipografia de Bulhões, com licença da Mesa do Desembargo do Paço.
Confesso que desconhecia que esta obra estivesse vertida para a nossa língua: atraiu-me, na sua lombada em couro, o título "Reforma Protestante". De que se trataria? Abri o livro e deparo com o célebre estudo de Cobbett. Instantaneamente, pensei: é meu! Os € 40 que paguei por tal maravilha pareceram-me um preço absolutamente justo, daqueles que não se discutem.
Neste livro, que serve de contraponto às falácias de cariz weberiano que certos pretensos liberais, ainda hoje, do alto da sua pomposa fatuidade, tanto gostam de invocar para denegrir o Catolicismo, Cobbett, de forma crua e imparcial, num conjunto de cartas escritas aos seus concidadãos, escalpeliza o desastre político, económico e social que constituiu a Reforma Protestante nas Ilhas Britânicas, atirando a totalidade da sua população para perto de três séculos de feroz tirania política como jamais existira previamente, e uma enorme parcela da mesma para uma miséria atroz e ignominiosa, resultado final do confisco dos bens eclesiásticos, anteriormente afectos à satisfação das necessidades dos estratos populacionais mais carenciados, em proveito de sórdidos interesses particulares e egoístas.
Voltando ao exemplar em análise, o mesmo tem o grande atractivo suplementar de as três informações censórias que o apreciam serem subscritas - nada mais, nada menos - pelo Padre José Agostinho de Macedo.
Transcrevamos alguns excertos da terceira informação, em que este ilustre pensador da contra-revolução nacional avisa:

"Subsistem os motivos por que se licenciaram pela Autoridade Ordinária as nove precedentes Cartas, e por eles se podem licenciar as de que esta petição trata: eu as li, e examinei com aquela atenção de que sou capaz, pede, e manda matéria de tanta gravidade, e de tanta importância. Quando o Autor anuncia, que as desgraças, a indigência, e a miséria da maior parte da população da Grã-Bretanha, Escócia, e Irlanda, provêm imediatamente da obilação do Catolicismo, e estabelecimento do Protestantismo, o comprova com tanta exuberância de razões, que os mais pertinazes inimigos da Igreja Católica se conhecem convencidos;
(…)
O Código Penal da Inglaterra contra os Católicos, que o Autor transcreve, é horroroso, ainda que modificado em diferentes reinados desde a ímpia Isabel até agora, é a mais terminante resposta que se pode dar aos que tanto exageram a intolerância da Igreja Católica. Na história das dez maiores perseguições do Cristianismo, não se descobrem quadros mais abomináveis. Tudo quanto os Revolucionários niveladores têm encarecido, e exagerado sobre os procedimentos da Inquisição, não é mais que uma ligeira sombra das barbaridades da Inquisição Protestante contra os Católicos dos três Reinos Unidos da Grã-Bretanha. É pois muito útil a leitura deste Livro, e será de consolação para os verdadeiros Fiéis, vendo a sua causa tão vitoriosamente advogada por um Protestante, e por isso é muito digno este Livro de se lhe conceder a Licença que pede para se imprimir; porém Vossa Senhoria mandará o que for servido. Lisboa, 23 de Agosto de 1827 - José Agostinho de Macedo".
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Para quem quiser tomar conhecimento com esta obra de William Cobbett através de uma edição recente em língua inglesa, recomendo a da
Tan Books, o maior editor norte-americano, e talvez do mundo, de livros católicos tradicionais.
JSarto

domingo, janeiro 28, 2007

Elegia

Opúsculo de dezasseis páginas, «mandado imprimir por Bernardino das Neves Nunes, Amigo do mesmo Ilustre Falecido».
Dele transcreve-se dois sonetos, inseridos, respectivamente, nas páginas 13 e 14, com a ortografia actualizada.
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SONETO
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Áureas portos do Olimpo omnipotente
Se abrem de par em par, por onde entrando
Vai o Cisne sonoro, que cantando
Deu glória, deu brasão à Lusa Gente.

Para encontrá-lo acode diligente
De antigos, Lusos Vates nobre bando,
Alegres, respeitosos saudando
O sublime Cantor do acesso Oriente.

“ Vem [ lhe dizem ] na Olímpica morada
” Cingir a fronte com perpétua rama,
” Que a Glória para ti tem destinada.

” E abrasado no ardor, que nos inflama,
” Conhecerás aqui que a vida é nada,
” Ou que a vida de Sábio é só na Fama! ”
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SONETO
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Debaixo desta campa sepultado
Jaz um peito, um que etéreo fogo ardia,
Que da Lusa Eloquência, e da Poesia
Será por longos Evos lamentado.

Deixou à Pátria alto Padrão alçado,
Enfeitando co’ as flores a Harmonia
A austera fronte à sã Filosofia,
Com exemplo entre nós não praticado.

Não indagues, Viandante curioso,
Da larga vida sua erro, ou defeito,
Da Morte acata o manto tenebroso.

Ele Homem foi, Homem não há perfeito;
E, deixando este valer lacrimoso,
Foi piedade buscar de Deus no peito.

A Casa de Sarto

Um ano de "Pasquim da Reacção"
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Retribuindo o imerecido elogio que o "Pasquim da Reacção" me dirigiu, felicito-o não só pela passagem do seu primeiro aniversário, mas sobretudo pelo elevadíssimo nível e distinção que tem sabido manter na blogosfera, qualidades que o tornaram um espaço verdadeiramente ímpar e de visita obrigatória diária. Em homenagem ao Corcunda, aqui deixo este texto do Padre José Agostinho Macedo, extraído da "Carta 20ª de José Agostinho Macedo a seu amigo J. J. P. L.", e escrito no estilo tão peculiar de tal autor:

"A Constituição de uma Monarquia, meu amigo, é o objecto mais sagrado e respeitável na ordem civil e política para o homem de bem, para o homem Católico, para o Cidadão pacífico, obediente e fiel aos seu Rei, à sua Religião, à sua Pátria, e às Leis estabelecidas, por que a sua Pátria se governa. Se V.M. quiser entender por todos estes nomes, ou por todas estas virtudes, que não são um nome vão, um Corcunda, entende V.M. uma verdade; e, pintando-o assim, ninguém o pintará melhor, e será um grande Pintor, porque apresentará um retrato em que se veja sem equivocação o original. Uma Constituição política é a força orgânica e até a força motriz de um corpo social, que se chama uma Nação. A primeira Constituição que apareceu no Mundo foi a do mesmo Mundo, e sem ela não poderia ele existir. No momento marcado na fluxão infinita da Eternidade, em que Deus se dignou criar o Mundo, logo lhe deu uma Constituição. É a primeira coisa que um rapaz sabe, quando na escola lhe ensinam a pôr em Português o que está em Latim:"Mundus a Domino constitutus est". Todas estas Leis invariáveis e multiplicadas por que se governa esta grande máquina, ou este corpo imenso, que se agita por um espaço indefinito, são outras tantas Leis regulamentares que se derivam dos artigos e parágrafos desta fundamental Lei, ou Constituição, que Deus dera ao Mundo no instante da sua criação. Sem esta Lei, mãe de tantas Leis, não existiria, nem poderia existir o mesmo Mundo. Estas Leis são sentidas porque a elas obedecem todas as partes deste grande corpo, ou por elas subsistem na ordem e no lugar que se lhes marcara. O Filósofo não as entende, nem as explica, isso não importa, basta que as veja, que as sinta, e que as não possa negar. Ora, se o Mundo visível subsiste por uma Constituição dada pelo Soberano Senhor de todas as coisas, que é Deus (deixemo-nos do Supremo Arquitecto, que aqui não entram obras de alvenaria), o pequeno Mundo moral de qualquer humana sociedade, que se chama Nação, também não pode existir sem uma Constituição. A do Mundo foi dada por Deus, a de qualquer Reino deve ser dada pelo Rei, que é um Representante de Deus, porque por Ele reinam os Monarcas, e toda a Potestade vem de Deus. - Isto era uma blasfémia desde 1820 até Maio de 1823; e quem se atrevesse a proferi-la, o menos que lhe faziam era mandá-lo respirar os ares livres das Berlengas, ou viajar, para se instruir, em Reinos Estrangeiros. Nós os Portugueses também somos gente; e quando desalojámos daqui os Mouros, que eram os donos da casa com posse pacífica de mais de três Séculos, depois que os Mouros tinham também posto a andar daqui para fora os Godos e os Suevos, que também tinham desalojado os Romanos, nós quisemos formar em corpo de Nação Livre e independente; e D. Afonso Henriques, com seu Procurador Lourenço Viegas, e com seu Secretário inamovível, Mestre Alberto; e de outra parte os Ricos Homens, que não eram como os ricos de agora, e no meio uns Abades de má cara, e não tanto dinheiro como o de Lobrigos, ou Soalhães; e no esquerdo lado os Procuradores dos Povos com as suas capinhas curtas, e de calças, sem serem de Saragoça; eram de picote, ou de chamalote: tudo junto em Lamego, foi dada pelo Rei a Constituição da Monarquia independente. Todos disseram - Assim seja, e ninguém mais abriu bico. Todo Portugal foi Corcunda; e ainda até hoje 8 de Setembro de 1827, entre tantos milhões de Corcundas que têm existido, não houve um só que não quisesse o Rei e a Lei, mas a Lei dada pelo Rei, e a isto é que se chama ser Corcunda.
Ora, se quando El-Rei D. Afonso Henriques saísse da Igreja de Almocade, em Lamego, lhe aparecessem à porta treze Franchinotes do Porto com um pergaminho feito de tripas, e nele escrita uma Constituiçãozinha feita no espírito das luzes do Século, derramamento de luzes e progressos da civilização, e lhe dissesse o Cidadão Borges, o Cidadão Manuel e outros que nós conhecemos, e lhe declarassem com todo o império - "Alto lá, V. Senhoria, Senhor D. Afonso, não põe um pé daqui para fora sem jurar esta Constituição que nós fizemos, e tenha a bondade de tirar da cabeça esse morrião, e embainhar essa espada, porque está na presença da Nação, que nós somos, e representamos" - que faria o Rei, e que fariam os Corcundas, que só querem o Rei, e a Lei dada pelo Rei? No Código Penal, que o Rei acabava de dar, havia uma frase de Latim mais puro que o de Cícero, e Petrónio Árbitro, que dizia - "Cum ligno troncudo" - isto é - um arroxo de um pau, com seus nozinhos, pegavam nele e esmigalhavam os ossos aos treze beneméritos do Porto, pegavam no pergaminho, e alimpavam….. e como ainda no Douro não haveria tantas vinhas, beberiam do que houvesse, e diriam - Viva o Rei, e viva a Carta que o Rei dá, porque os Corcundas não querem outra coisa!".
JSarto

sábado, janeiro 27, 2007

A Casa de Sarto

Perdidos e Achados
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Um destes dias, enquanto arrumava alguns livros numa das prateleiras da estante da minha camarata de trabalho, redescobri quase perdidos uns velhinhos panfletos impressos em papel amarelecido pela passagem dos anos, adquiridos em tempos num alfarrabista de Lisboa, e de cuja existência já mal me lembrava. Mirei-os e congratulei-me com o achado: às vezes, as melhores descobertas bibliográficas jazem literalmente esquecidas na posse. À minha frente tinha, nada mais, nada menos, do que quatro preciosidades cuja leitura promete ser viva e intensa: do Padre José Agostinho de Macedo (na imagem acima), o "Sermão sobre a Verdade da Religião Católica", o "Sermão de Acção de Graças pelo Restabelecimento da Monarquia Independente", e um "A Voz da Justiça, ou o Desaforo Punido"; de Frei Fortunato de São Boaventura, um comentário a um "Documento Original da Maçonaria Portuguesa ou Terceiro Ensaio Anti-Religioso, que um sacerdote pedreiro-livre dirigiu em data de 20 de Abril de 1826 para Lisboa ao Excelentíssimo Senhor A.P.".
Havendo tempo, farei por citar aqui neste espaço qualquer coisa retirada destas obras; mas para já, consigo imaginar o festival de merecida bordoada corcunda que se vai abater em cheio sobre os costados da cáfila liberal, da corja jacobina e da trupe malhada, cujos directos herdeiros espirituais continuam desgraçadamente a azucrinar-nos o espírito quase duzentos anos depois.
JSarto

domingo, dezembro 17, 2006

José Agostinho de Macedo

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